Karla Maria-SIGNIS Brasil
Brasil.- Às 5 horas da manhã Joana já está de pé, pronta para mais um dia. O café da manhã é entregue na porta de sua cela, uma “mordomia” nada saborosa divida com outras quatro mulheres, em um espaço que fora destinado a apenas duas pessoas. A higiene pessoal é feita, depois de muita negociação, já que o tubo pequeno de pasta de dentes e os dois papéis higiênicos oferecidos pelo Estado para todo o mês não dão conta de uma limpeza considerável.
Pasta de dentes, shampo e condicionador são os produtos mais desejados nesse mercado paralelo dentro do sistema prisional, ao lado dos absorventes e sabonetes, já que o jumbo (a cesta de alimentos e produtos trazidos pelas famílias aos presídios) não chega a todas as detentas. Com Joana é assim, já que sua família vive a mais de 600 quilômetros de distância de sua cela.
O banho de sol é liberado às 8 horas, e ali, no pátio, batem papo, amenizam a saudade, partilham a esperança de sair daquela rotina e recomeçar a vida fora das grades. Às 10 horas, Joana e suas colegas de cela, são “recolhidas” para o serviço do almoço, que mais uma vez, chega até a cela. “Ficávamos aguardando até o próximo banho de sol, às 13 horas, às 14h voltávamos para o pátio e às 16horas éramos recolhidas novamente para o jantar, e na cela ficávam até o dia seguinte”, conta Joana.
Essa era a rotina da moça que foi presa aos 23 anos. Monótona, apertada, sem espaço para o trabalho, para a dignidade, para o futuro. “Duas vezes na semana podíamos escolher livros para lermos e devolver na semana seguinte”, contou Joana, que espiava a programação da cela vizinha que contava com televisão. “Se a detenta tivesse condições de comprar uma TV dava para assistir, assim como um rádio…”, explica.
Ela deixou o Sistema Prisional em janeiro de 2016 e se lembra que aos domingos era diferente, era um dia festivo, já que algumas mulheres recebiam visitas de seus familiares. Algumas.
Essa é uma das tantas realidades das mulheres encarceradas no Brasil. Distanciadas de suas famílias, abandonadas por seus companheiros, sem acesso a suprimentos básicos de higiene pessoal, buscam manter a sanidade mental em rotinas que não visam ressocializar e sim punir pura e somente, alimentando um sentimento de revolta e vingança, naqueles que são encarcerados.
Raio x – No Brasil, cerca de 620 mil pessoas estão presas, destas, cerca de 40% ainda não foram julgadas, são os chamados presos provisórios. Aguardam a sentença ou absolvição em centros de Detenção Provisória, na sua maioria, de forma precária e superlotada.
Os números são do Infopen Mulheres (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), o último levantamento oficial realizado em 2014.
Em presídios, centros de detenção e em um Sistema, arquitetados por homens e para homens, as mulheres encarceradas acabam sofrendo duplamente suas penas, para além da privação de liberdade.
“Em todo o período que fiquei presa passei por diversas dificuldades, a distância, saudade da família e superlotação, este era um dos casos que mais nos entristecia. Ficávamos em um cela onde suportava duas pessoas e estávamos em cinco pessoas”, conta Joana, que foi enquadrada no artigo 33 do Código Penal, ao ser presa com seu companheiro, quando ele escondia drogas.
Ao cumprir pena em uma unidade prisional do Oeste Paulista, a mais de 600 quilômetros de distância de sua família, sentiu a saudade e o abandono da maioria das mulheres que cumprem pena no país. “Minha família não tinha condições de ir até lá para me visitar, assim como a maioria das outras meninas. Algumas moravam em cidades vizinhas e recebiam seus familiares, algumas”, conta Joana.
Joana conquistou a liberdade em janeiro de 2016, mas se lembra com detalhes, daquilo que o Estado não a faz esquecer. “Quando estava em Tupi Paulista, me senti como uma pessoa totalmente excluída da sociedade, não tinha valor perante ninguém, tudo era muito difícil e pensava que não iria ter fim. Já no semiaberto, tudo foi melhorando. Por ser um Centro de Progressão, éramos tratadas como mulheres dignas de respeito e igualdade. Era onde eu via esperança de alcançar a minha liberdade”.
Joana deixou uma população carcerária feminina de cerca de 38 mil mulheres, a maior parte delas, presas por crimes não violentos, especialmente o tráfico de drogas, na proporção de 68%. Para o Grupo de Trabalho sobre Mulheres, Políticas de Drogas e Encarceramento formado por especialistas de países da América Latina, Estados Unidos e Caribe, essa realidade se estende em países como a Argentina e a Costa Rica.
“Apesar de serem mais afetadas pelas políticas punitivas, essas mulheres muito raramente representam uma verdadeira ameaça para a sociedade. A maioria é detida por realizar tarefas de menor importância, embora de alto risco, na hierarquia do tráfico de drogas (distribuição de drogas em pequena escala ou transporte de drogas), como uma forma de enfrentar a pobreza ou, às vezes, por coerção de um parceiro ou membro da família”, afirmam as especialistas no documento “Um guia para a reforma em políticas na América Latina e no Caribe”.
O guia aponta que o encarceramento (destas mulheres) pouco ou nada contribui para desmantelar os mercados ilegais de drogas e melhorar a segurança pública. “Pelo contrário, costuma piorar a situação, dificultando ainda mais o acesso a trabalhos legais e formais após saírem da prisão, perpetuando um círculo vicioso de pobreza e envolvimento com mercados de drogas e encarceramento”.
No Brasil, as mulheres encarceradas tem um perfil semelhante ao da maioria da população das comunidades mais pobres do país: 67% negras ou pardas; 68% com idades entre 18 e 34 anos; 4% são analfabetas, contra 5% entre os homens encarcerados; 11% delas concluíram o ensino médio, contra 7% dos homens, 50% delas não concluíram o ensino fundamental e entre os homens essa taxa é de 53%.
Mães no cárcere – Para o Grupo de Trabalho sobre Mulheres, Políticas de Drogas e Encarceramento já citado, o encarceramento de mulheres, mães em particular, pode ter consequências devastadoras para suas famílias.
“Na ausência de redes de proteção social fortes, crianças, jovens, idosos ou deficientes, pessoas dependentes delas ficam expostas a situações de abandono e marginalidade. O encarceramento pode inclusive, embora paradoxalmente, aumentar a probabilidade de as pessoas sob sua responsabilidade consumirem drogas ou se vincularem às redes ilegais de tráfico”, destaca o Grupo.
Para os especialistas, é preciso reconhecer que as atuais políticas de drogas têm dado lugar a uma criminalização excessiva e ao encarceramento de mulheres e que é necessário revisar essas políticas e reduzir a população feminina privada de liberdade. “As políticas de drogas devem desenvolver-se de acordo com o princípio jurídico fundamental de que a ferramenta penal deve ser utilizada apenas como último recurso”.
No Guia para gestoras e gestores de Políticas Públicas, que oferece um roteiro de reformas sobre políticas baseadas na saúde pública, respeito aos direitos humanos e perspectiva de gênero, os especialistas latinoamericanos, apontam a necessidade de realizar reformas fundamentais às leis de drogas em toda a região para que os delitos de pouca importância, cometidos por mulheres ou homens, sejam penalizados com alternativas à prisão e para assegurar a proporcionalidade das penas.
A juíza aposentada e presidente da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP), Maria Lucia Karam concorda. Para ela, as medidas alternativas ao encarceramento são respostas menos custosas, menos prejudiciais e mais eficazes para enfrentar os delitos de drogas.
Em audiência pública sobre Desencarceramento e Desmilitarização, realizada na Câmara dos Deputados, em Brasília, a capital, a juíza aposentada afirmou que a legalização e consequente regulação e controle da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas é medida indispensável e urgente para iniciar o rompimento do paradigma bélico.
“(Indispensável) para reduzir mortes, afastar o motor do crescimento das prisões e significativamente reduzir o número de presos, para conter a expansão do poder punitivo”.
Para Joana, a moça que foi pega e presa com seu companheiro com drogas, é preciso mais, que a sociedade veja a situação sem preconceitos. “Acredito que as pessoas que estão de fora, não deviam julgar tanto. Só quem passa por um lugar como eu e tantas outras mulheres e homens passaram, pode saber o que é viver a realidade, mas graças a Deus isso tudo um dia acaba e podemos recomeçar nossas vidas, apenas lembrando dos dias de sofrimento”.
*Karla Maria é jornalista brasileira, autora do livro Mulheres Extraordinárias, Paulus Editora e duas vezes premiada com o troféu Dom Helder Câmara de Imprensa da CNBB.