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HISTORIA

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25 junio 2020

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A memória oral dos povos e as narrativas que escrevem a história

A memória oral dos povos e as narrativas que escrevem a história

Guadalupe Corrêa Mota*

“Era uma vez…”

 

Assim começa a maneira tradicional da contação de histórias em nossas comunidades, em nossas escolas, em nossas famílias desde tempos imemoriais. E por mais desatenta que seja a escuta deste mantra – “era uma vez” -, ele tem o poder de nos remeter instantaneamente a uma espécie de “casulo temporal”, no qual nos vemos submergidos em mundos de imagens, sons, cores, cheiros, sentimentos, desejos e medos que mal cabem na caixinha das palavras e dos significados que trazemos na memória do intelecto do coração, de todos os sentidos. E que sensação de aconchego, de conforto, de segurança, de “colo” de mãe e pai o ambiente deste casulo temporal nos traz! Somos levados à terra conhecida da vida vivida na infância, quando as histórias contadas pelos mais velhos – da família, da escola, da igreja, da vizinhança – eram histórias reais no universo encantado da imaginação. Não nos interessávamos por verossimilhança, veracidade, plausibilidade, razoabilidade, credibilidade nos argumentos ou nos eventos narrados com maestria pelos contadores de histórias. A única verdade aceitável eram os sons das palavras que desfilavam diante de nós (e, às vezes, silêncios eternos carregados de suspense apavorante), com seus poderes fantásticos de provocar curiosidade, interesse, ternura, tristeza, medo, raiva ou a alegria do final feliz… em geral, sempre feliz.

 

Era uma vez…

 

Era uma vez uma menina que nasceu no meio da Floresta Amazônica, no Brasil, e, quando criança, ouvia muitas histórias de suas avós, das tias, dos parentes, dos amigos, dos professores, na catequese da pequena igreja. A menina, junto com os irmãos, amigos e colegas gostava de encenar histórias que ela mesma criava ou as histórias que ouvia. O quintal de terra batida – onde a goiabeira, o ingazeiro, o mamoeiro, a jaqueira, o abacateiro faziam parte do cenário -, transformava-se no palco para um espetáculo marcado pelas falas muitas vezes improvisadas e sem nenhum compromisso com a coerência textual. Importava falar, cantar, dançar, apresentar-se, fazer-se notar, marcar presença para o grupo de amigos ou de familiares.  Já era a segunda metade do século XX, mas no interior da Floresta Amazônica eram tempos ainda sem televisão, e reinava absoluto o rádio – também o alto-falante pendurado nos postes de iluminação – como o principal meio de comunicação. Por isso, a fala, as histórias narradas “ao vivo”, a oralidade tinha papel central na conformação do imaginário simbólico identitário daquelas comunidades. “Ser paraense”, isto é, ser natural do estado do Pará, no meio da Floresta Amazônica, era ser reconhecida por um ‘sotaque’ característico – com um forte acento no “s” que assume o som chiado de “x” como ‘maix’ em ‘mais’ – e que contrastava significativamente com o ‘sotaque’ de estados vizinhos, que mantinham o som sibilante de ‘s’ no ‘s’. Mas isso era apenas uma das idiossincrasias da nossa identidade como paraense.

 

Claro que, no cotidiano da vida vivida com outros falantes com o mesmo sotaque, a diferença não se fazia notar. E não tinha maior relevância para a compreensão da realidade ou para o sentimento de pertença a uma comunidade específica. Entretanto, quando a menina se mudou para o maior estado da Federação, São Paulo, o ‘som’ da voz, o ‘sotaque’ tão querido, tão afetuoso, tão entranhado nas memórias de todos os sentidos emergiu como ‘diferença’, estranhamento, dissonância em meio a diversos sotaques nacionais. E, conforme o tempo foi passando, a menina foi assumindo outros ‘sotaques’, não apenas os sotaques sonoros, mas os semânticos também. E… Era uma vez… Bem, essa história ainda não terminou.

 

Era uma vez…

 

Talvez você tenha sentido certo estranhamento diante dessa introdução, em relação ao título deste artigo: “A memória oral dos povos e as narrativas que escrevem a história”. Mas, permita-me explicar o motivo: quando comecei a pensar no que escrever para o tema que me foi proposto, e que insere-se no contexto da Mensagem do Papa Francisco para o 54º Dia Mundial das Comunicações Sociais, a ser celebrado este ano no dia 24 de maio – e que tem como tema “‘Para que possas contar e fixar na memória’ (Ex 10,2). A vida faz-se história” – ocorreram-me dois pensamentos: o primeiro, a atenção para a expressão “memória oral”, com ênfase na experiência da ‘oralidade’ que remete ao som da voz, ao som das palavras, aos sotaques, com suas peculiaridades, que tanto identificam as origens dos falantes; e o segundo, de imediato, a questão do ‘silêncio’ no contexto da sociedade ‘barulhenta’ na qual vivemos, em tempos de ubiquidade das telecomunicações. Ao mesmo tempo que se ‘dá voz’ e vez a todo ‘narrador’, essa voz é dissipada imediatamente no oceano de vozes simultaneamente amplificadas, tornadas irreconhecíveis, pois, via de regra, são revestidas pela estética universal da rede social. E refletindo sobre o ‘som das palavras’ que alguém precisa proferir para ‘narrar’ as histórias eu fui levada a uma nostalgia – atávica, talvez – pela ausência do som das palavras do meu ‘povo’ da minha terra natal. Eu já estou ‘longe de casa’ há muito tempo, tenho voltado para lá cada vez menos, embora minha família esteja lá. E para suprir essa saudade do ‘som das palavras’ do meu povo – não só o físico, mas o semântico também – a internet (onde posso ouvir histórias com o sotaque característico e as expressões únicas) passou a ser um dos ‘fios’ que me mantém ‘tecida’ na minha cultura original, que me ajuda a “não me perder”, que me ajuda a revisitar as minhas raízes, a manter coerente a minha “narração” pessoal, identitária diante da grande história humana.

 

E é exatamente disso – da concretude da memória encarnada nos corpos históricos na qual se revela a história de amor de Deus para com seu Povo – que trata a Mensagem do Papa para o Dia Mundial das Comunicações. A Mensagem insere-se no contexto de um desejo do Santo Padre para que os comunicadores ajudem o Povo de Deus a não se perder, a não perder a sua identidade, a sua história – pessoal, familiar, social, eclesial – no emaranhado de tantas histórias nem sempre boas, disseminadas, sobretudo, no universo das redes sociais; a ajudar o Povo de Deus, pela ação do Espírito Santo, a fixar no coração e a contar/narrar, narrar-se/partilhar ao mundo quem somos nós aos olhos de Deus; e a ajudar o Povo de Deus a lançar-se na aventura de construir (tecer) uma história bonita, uma história boa, plena de futuro, de esperança geradora de vida em que caiba toda a família humana, a despeito do desencantamento que semeia suas sementes de desesperança e de morte por todo o mundo.

 

Francisco parte da convicção de que a história humana, por ter sido tecida com a história do amor de Deus, através da Encarnação, é em si mesma um repertório de “estupendas maravilhas”, escrita de modo admirável na história de Jesus entre os homens. E é na história cotidiana, “mesmo na heroicidade oculta no dia a dia” – que continua sendo tecida/atualizada em cada história humana – que o Senhor revela sua ação misericordiosa e significativa para a história humana em todos os tempos. O desencantamento não terá a última palavra. Por isso, a história humana será sempre aberta à redenção, ao bem, a um futuro prenhe de esperança: a morte, a dor, a violência, o não-sentido não terão a última palavra. A última palavra é Amor gerador de vida. “Por isso, a humanidade merece narrações que estejam à sua altura, àquela altura vertiginosa e fascinante a que Jesus a elevou”.

 

Acionar a “memória oral dos povos e as narrativas que escrevem a história” para ajudar nosso povo – hoje, a grande família humana – a “contar e fixar na memória” (Ex 10,2) as maravilhas da ação de Deus, coloca-nos diante do desejo do Papa como uma tarefa deveras desafiadora. Cada palavra desta proposta nos situa no empenho de, em primeiro lugar, identificar as relações que delas derivam e que nos forçam a uma opção não apenas estilística, mas, sobretudo, semântica, que vão nos ajudar a “olhar o mundo e os acontecimentos com ternura [e que] revele o entrançado dos fios pelos quais estamos ligados uns aos outros”. Vejamos:

 

1 – Memória: Essa palavra pode evocar (revelar, contar) palavras como lembrança, passado, recordar, guardar, fixar, coração, afeto, medo, trauma, esquecimento, raiz, origem, descendência, presença, ausência, futuro, silêncio, gestos, cheiros, paladar, sentidos. E carrega sempre uma indagação angustiante: “Quem somos, como estamos e para onde queremos ir, como pessoa, como sociedade, como humanidade? ”

 

2 – Oral: Oralidade, som, barulho, silêncio, palavras, falas, voz, ruídos, perturbação, distúrbios, confusão. Com outras perguntas: “De onde se fala? Quem fala? O que diz? Por que diz? Para quem diz? E o que oculta? Mas na sociedade da informação, onde cada um pode ‘falar’ a hora que quiser, o conteúdo que desejar, uma pergunta não tem sido feita: e quem ouve? Não estamos nós, submersos em vozes, ruídos, sons, nos tornando surdos a tudo e a todos? Essa ‘surdez’ não nos deixa indiferentes também?

 

3 – Povos: pessoas, grupos, etnias, culturas, pertencimento, fronteiras, limites, território, organização, governo, leis, sobrevivência, “ismos” (nacionalismo, patriotismo, fundamentalismo, racismo, machismo, sexismo, partidarismos), xenofobia, aporofobia, silenciamentos, sem-voz, sem-vez, inclusão, exclusão. Na sociedade globalizada informacional, a palavra “povo” vem perdendo densidade, substância, consistência, sem objetivos, não mais um ‘ponto fixo’, uma referência para a construção das identidades de homens e mulheres concretos que têm suas histórias de vida construídas, em geral, no anonimato, no cotidiano de suas ações, aquelas personagens verdadeiramente heroicas que, “para encalçar um sonho, enfrentam situações difíceis, combatem o mal movidos por uma força que os torna corajosos, a força do amor”. Na sociedade globalizada informacional neoliberal, a palavra ‘povo’ converte-se em número, algoritmos, dados, bits a alimentar um sistema fluído, invisível, mas ‘universal’, que desconhece nome, sobrenome, filiação, parentesco, naturalidade, nacionalidade… que não reconhece sotaques, idiossincrasias, regionalismos, cheiros das comidas, das bebidas, das flores que só existem na terra natal.

 

E como “fixar no coração” a história do meu povo, alimentar minhas raízes, se meu povo já não o reconheço mais?

 

4 – Narrativas: Toda narrativa tem um objetivo, enredo, temas, personagens arquetípicas, ambiente, objetos de cena, tempo, problemas, soluções, dramas, tragédias, suspense, palavras, silêncios, ausências, diálogos, desencontros, quiçá uma “lição oculta” a ser revelada no final. Esse conjunto de palavras/ferramentas estão ao dispor do ‘criador’ que se esmera em construir uma ‘tessitura’ coerente, consistente, verossímil para que o ouvinte/telespectador se identifique, se reconheça e adira, em alguma medida, à narrativa, que se mostra atraente. E tão fugaz. Mas “nem todas as histórias são boas”, adverte Francisco em sua Mensagem. Há sempre a “tentação da serpente” que introduz na narrativa “um nó difícil de desfazer”, criando, assim, a trama da discórdia, da violência, da falsidade, de ódio que contribui para “despojar o homem de sua dignidade”.

 

5 – Escrever: marcar com o estilo, traçar uma linha, gravar, desenhar, representar em caracteres, registrar, revelar, ocultar, silenciar, relacionar, finalidade, objetivo, propósito, fixar, escolher (palavras, estilos, formas, significados). E “numa época em que se revela cada vez mais sofisticadas a falsificação, atingindo níveis exponenciais (o deepfake) ”, está nas mãos do narrador/criador – que o Papa diz ser cada homem e cada mulher já tecido com a história divina – “patrocinar e criar narrações belas, verdadeiras e boas […] histórias que tragam à luz a verdade daquilo que somos”. Mas, o que somos?

 

6 – História: Indagar, inquirir, saber, ver, testemunhar, conhecer, registrar. E não são poucas as perguntas que dela derivam: Qual história? Qual enredo? Quais personagens? O que revela? O que oculta? O que contém? O que exclui? Quem é o protagonista? Quem são os coadjuvantes? Quem são os vencedores e os vencidos? Estamos acostumados a ver a ‘história’ pela ótica dos vencedores, das ‘grandes’ personalidades, dos conquistadores e, a partir da noção eurocêntrica de história, entendida como uma linha evolutiva das sociedades em vista do progresso (intelectual, técnico, científico) e em detrimento ou desvalorização das histórias dos povos que ‘ainda’ não atingiram estágio de desenvolvimento similar às sociedades europeias. Então, meu povo – aliás, povos – do meio da Floresta Amazônica não tem cultura, não tem história, não tem relevância? Mas entre as novas concepções do conceito de história que já emergem, rompendo com a mentalidade colonizadora, patriarcal e escravocrata, e as novas práticas políticas dos diversos povos que tiveram suas histórias marcadas pela escravização, pela espoliação, pela violentação de suas culturas autóctones, ainda estamos sendo marcados por ‘narrativas’ que não nos ajudam a nos compreender e a dizer quem somos.

 

Era uma vez…

 

Era uma vez, no fim de um dia chuvoso e triste de março, em que a morte cantava suas ladainhas lúgubres por todas as cidades do mundo – porque os homens que lideravam essas cidades preferiram ouvir o som do tilintar das moedas e não o som dos gemidos das dores e dos sofrimento das vítimas do mal invisível -, um homem idoso, vestido de branco, com o andar manquejante, atravessa um longo corredor de uma enorme praça vazia (costumava ser a praça das multidões) para falar a seu povo, que estava confinado em suas casas por causa do mal invisível, e para rezar a Deus, pedindo o fim daquele sofrimento universal. O homem idoso, vestido de branco e de andar manquejante, sozinho na grande praça, e que tinha como testemunhas o Crucificado e a Mãe, falou com seu povo, através de um grande olho que conseguia alcançar todos os cantos do planeta. E seu povo o pôde ver e ouvir. E disse, dentre tantas palavras que soavam tristes, quase sussurrantes: “Nesta Quaresma ressoa o teu apelo urgente: “Convertei-vos…” “Convertei-Vos a mim de todo o vosso coração” (Jl 2,12). Chama-nos a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo de teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros. E podemos ver tantos companheiros de viagem exemplares que, no medo, reagiram oferecendo a própria vida. É a força operante do Espírito derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos de nossa história: médicos, enfermeiros, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho” (1).

 

Quando o homem idoso, vestido de branco e de andar manquejante, entregou a Mensagem para o 54º Dia Mundial das Comunicações, no dia 24 de janeiro, festa de S. Francisco de Salles, Padroeiro dos Jornalistas, o mundo ainda não estava prostrado diante do ‘mal invisível’ chamado Covid 19. A Mensagem era a manifestação de um desejo do Papa (Francisco não tem vergonha, receio em expressar ao seu povo os desejos do seu coração. É como Jesus falava com seus amigos, com seus discípulos, com seu Pai), angustiado pela “epidemia” da construção de histórias falsas que estão a esgarçar o tecido social, a confiança nas relações humanas mais elementares e o sentido de coletividade. E deixava essa tarefa, não apenas aos comunicadores, aos agentes de pastoral da comunicação, aos profissionais da Comunicação, mas a todo o povo de Deus. É o povo de Deus, na história de cada homem e mulher, que tecendo a sua vida como uma história bela, boa, verdadeira, a ser narrada e compartilhada, que estará a revelar o amor de Deus pela humanidade. Essa vida que se faz história será o testemunho mais eloquente e crível no meio do oceano de histórias tristes e feias.

 

E na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações, o Papa nos lembra ainda que se “nem todas as histórias são boas”, a História das histórias –  a história de Jesus que se faz humanidade – “não é patrimônio do passado; é a nossa história, sempre atual”, tarefa a ser completada em toda e qualquer circunstância, pois “ninguém é mero figurante no palco do mundo; na história de cada um está aberta a possibilidade de mudança”.

 

Era uma vez…

 

Hoje, a história da grande família humana que habitava uma casa comum está sendo reescrita…

 

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* Guadalupe Corrêa Mota – Jornalista, Assessora de Comunicação da Diocese de Santos/SP (Brasil), Doutoranda em Educação pela Universidade Católica de Santos

 

1- Trecho da homilia do Papa Francisco antes da oração Oração Urbi et Orbi Extraordinária pelo fim da pandemia de Covid 19, no dia 27 de março de 2020, na Praça S. Pedro, no Vaticano. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-03/papa-francisco-homilia-oracao-bencao-urbe-et-orbi-27-marco.html

 

Artículo publicado en la revista digital Punto de Encuentro, de SIGNIS ALC, junio 2020

 

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