Elson Faxina*
Renasci muitas vezes neste mundo. Mas três delas são as que demarcaram a minha vida: me reconhecer como cristão, as CEBs e Paulo Freire, com que tive a honra de fazer um grande curso de pouco mais de meio dia.
Vim ao mundo numa família grande, como a maioria da época, e sem dar-me conta me reconheci cristão, quase que por força cultural. Lembro-me da alegria de criança ao contar aos amiguinhos que eu era como Jesus: filho de uma Maria e um José. E minha mãe tinha ainda um segundo nome imponente para nós brasileiros: Aparecida, a nossa padroeira. Juro que era uma fé quase cega, mas deliciosa porque me vinculava diretamente ao outro Filho de Maria e José: Jesus. Tinha certeza de Ele me levaria ao céu; bastava eu evitar o Coisa-Ruim (prefiro nem falar o nome certo dele), o opositor de Seu Pai. Mais tarde aprendi que, como nas grandes narrativas, a estupidez do Coisa-Ruim serve também para engrandecer o nosso Deus Pai, o Criador de tudo que é bom. O opositor é, portanto, o criador de tudo o que não presta: violência, corrupção, fome, guerra… Mas eu gostava mesmo era de pensar que Deus é amor; já o Coisa-Ruim é ódio, é exclusão, é preconceito, é falar de paz defendendo armas.
Anos depois veio meu segundo renascimento: as CEBs – Comunidades Eclesiais de Base. Foi um renascer como cristão. Ainda adolescente, quase jovem, participava com minha família de uma CEB, que reunia semanalmente todas as famílias para ler a realidade, iluminá-la com a Bíblia e buscar junto soluções para os problemas vividos por todos nós. Sim, os problemas eram coletivos e as soluções eram igualmente buscadas coletivamente, na comunidade. Ali, descobri o outro como a própria carne e o próprio sangue do Filho do outro José e da outra Maria.
Claro que foi quase uma decepção descobrir que, para um bom cristão, não bastava evitar o Coisa-Ruim pra ganhar o céu, era preciso compromisso com o outro, especialmente o outro despossuído, empobrecido, perseguido, insultado, ignorado, preso, abandonado…
Nas CEBs com um Freire francês
Foi por meio das CEBs que veio meu terceiro renascimento: descobri Paulo Freire, o francês. Eram os anos 1970 e eu próximo dos 18 anos de idade, quando fui indicado pelo pároco de minha cidade (Tapejara) para representar a paróquia num grupo encarregado de produzir cartilhas para orientar as reuniões das CEBs, na recém-criada diocese de Umuarama, Paraná, Sul do Brasil.
Sem saber muito o que ia fazer lá, participei de um curso de formação, organizado por um padre francês, cujo nome só lembro como Jean Pierre. Ao explicar o que chamou de uma nova metodologia de trabalho social, que tinha uma importância cristã de reconhecer o conhecimento popular com a mesma força que reconhecíamos o conhecimento “dos doutores”, falou de um professor cristão, chamado Paulo Freire. Disse que, para esse senhor, o melhor conhecimento não era o meu, nem o dele, nem o do outro; era o nosso. Lembro-me dele dizer: um dia, o Brasil vai saber quem é mesmo o Paulo Freire.
Como jamais tinha ouvido falar de Paulo Freire no Brasil, então envolto a uma violenta ditadura militar (1964-1985), tive a certeza de se tratar de alguém de seu país, a França, e que um dia o Brasil iria conhecê-lo. Falou muito de um livro, com um nome que custei a entender: Pedagogia do Oprimido.
E, então, ele começou a falar de uma metodologia baseada na sabedoria popular. Era o auge do método Ver-Julgar-Agir que, aliás, achava que era também de Paulo Freire, o francês. Dizia que deveríamos criar um processo de leitura da nossa realidade, para entendê-la como ela realmente é, analisá-la do ponto de vista cristão e buscar encaminhamentos conjuntos. Para isso, nas cartilhas que produziríamos para as CEBs, deveríamos contar histórias que fossem muito parecidas com as da vida real de nossas comunidades; era o VER, com o objetivo de ilustrar a realidade vivida a fim de provocar uma discussão/reflexão em grupo. Em seguida, deveríamos buscar um texto bíblico que pudesse iluminar aquela história a partir do olhar do cristão; era o JULGAR. Como terceiro passo, deveríamos elaborar perguntas para que os próprios participantes respondessem, a fim de encontrarem soluções em comum: o AGIR. E, por fim, insistia Pe. Jean Pierre: “muita oração para nos reconnecter com Deus”. Ele falava um português com muito sotaque, e não raro o francês se intrometia nas frases. O próprio Freire (de Paulo) saía com um som pouco familiar.
Pe. Jean Pierre dizia que o tal Paulo Freire dizia que a gente só pode entender as coisas complexas a partir da leitura da nossa realidade mais próxima. Foi uma identificação à primeira vista com Paulo Freire e com o método Ver-Julgar-Agir, que para mim eram, naquele momento, a mesma coisa.
Educador popular
Anos depois, me obriguei a deixar o interior para estudar, “para ser alguém na vida”, diziam José e Maria, meus pais. Em Curitiba, membro da Pastoral da Juventude e, já estudante de Jornalismo, passei a ser um educador popular. Era o ano de 1979 quando comecei como alfabetizador popular na favela do Valetão, a primeira de Curitiba, por indicação de um amigo de infância, naquele momento, um seminarista. Foi meu segundo contato com Paulo Freire, porque toda a metodologia de alfabetização popular era freireana. Ali descobri que o tal Paulo Freire francês não existia, era brasileiríssimo e ainda proscrito.
40 anos depois, tenho decoradas, sem pestanejar, as cinco etapas que aprendi para ser um educador na metodologia freireana, tudo construído conjuntamente com os estudantes. A primeira é da pesquisa, das palavras geradoras; a segunda é a da tematização ou problematização, a partir dessas palavras; a terceira é da resolução de problemas, feita em conjunto; só na quarta etapa vão se dar a leitura e a escrita, a partir das sílabas presentes em tais palavras; e a quinta etapa é a das novas palavras, usando as famílias silábicas agora conhecidas. Então, o grupo selecionava as novas palavras, seguindo o mesmo processo de antes.
Era infalível: em alguns meses, com encontros de duas horas todos os dias de segunda a sexta-feira, as pessoas se transformavam. Sabiam ler e escrever e a maioria se tornava liderança popular.
Foi como educador popular que conheci pessoalmente Paulo Freire, num curso a que me refiro mais adiante.
UCBC / Leitura Crítica da Comunicação-LCC
No ano seguinte, aconteceu meu terceiro contato com Paulo Freire, no IX Congresso Nacional da UCBC – União Cristã Brasileira de Comunicação Social, que reuniu estudantes, professores, pesquisadores e profissionais de comunicação (especialmente cristãos de quatro Igrejas históricas: católicos, luteranos, metodistas e presbiterianos), sob o tema Comunicação e Educação Popular, realizado na Universidade Metodista de São Bernardo dos Campos, SP. Não me recordo se houve uma única mesa em que Paulo Freire não fora citado. E então, de fato, nunca mais consegui separar muito bem comunicação de educação.
A partir dali, comecei a fazer parte do projeto LCC – Leitura Crítica da Comunicação, desenvolvido no âmbito da UCBC, completamente embebecido de duas correntes – digamos – teóricas: Paulo Freire e Teologia da Libertação, além das incipientes buscas por uma teoria da comunicação que contemplasse uma visão latino-americana. O LCC surge como o rompimento de uma forma de fazer crítica de mídia a partir do olhar dos especialistas, para incorporar o olhar do grupo, da comunidade, na leitura crítica da comunicação. Era uma metodologia assumidamente freireana, em que o monitor não devia concluir nada; devia sim perguntar, provocar o grupo, apontar possibilidades, vazios, presenças e ausências de conteúdos e elementos comunicativos para subsidiar o debate, até que o próprio grupo chegasse a suas conclusões.
Destaco aqui três de uma dezena de definições do papel do monitor de LCC, presentes no documento que fundamenta sua prática: Projeto LCC.
O monitor deve:
– Facilitar o desenvolvimento de um diálogo relacionado com a prática e com a vida das pessoas do grupo, numa postura pedagógica baseada em Paulo Freire.
– Assumir uma postura pedagógica não-autoritária e dialógica, na busca de realimentar constantemente o diálogo no grupo.
– Ter uma preocupação de não antecipar ao grupo sua visão dos valores difundidos por determinado produto cultural ou passar as informações sobre o conteúdo ideológico das mensagens ou ainda sobre as técnicas da linguagem dos MCS (Meios de Comunicação Social), incluindo os elementos semiológicos ali presentes, mas de trazê-los ao grupo só na medida em que são necessários para aprofundar sua leitura crítica da comunicação. (UCBC, 1982)
O LCC inaugurou a popularização da crítica de mídia, que sigo desenvolvendo até hoje em meus trabalhos acadêmicos de ensino, pesquisa e extensão na Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Curso com Paulo Freire
No ano seguinte, 1981, ainda como jovem educador popular e já comunicador social, faria um curso pessoalmente com o tal Paulo Freire, que havia voltado do exílio após 16 anos proscrito pela ditadura militar. Foi um dia quase inteiro com ele e o meu melhor curso de comunicação social, especialmente de televisão, embora o tema fosse educação.
Numa dinâmica de fazer uma exposição sobre seu método [1] e abrir diálogo com uns 80 alfabetizadores de jovens e adultos, entre os quais eu estava, decidi perguntar-lhe algo mais próximo do curso de comunicação social, que fazia na então Universidade Católica do Paraná. Lembro-me de perguntar-lhe algo como: “Professor, o senhor fala na importância da educação para a autonomia das pessoas, mas e a televisão, não está educando as pessoas no sentido inverso?”
Em vez de responder, ele mandou uma pergunta e me chamou de professor. Um pirralho de 20 e poucos anos, sendo chamado de professor por Paulo Freire! Não teve como não sentir um frio na barriga e uma vontade de estufar o peito, de tanto orgulho. “Professor, o que te preocupa na televisão?” – provocou ele, com ar de curiosidade.
Como não esperava uma pergunta, e sim resposta, fiquei no costumeiro: “Pois então, professor, é muita pornografia, muita violência…”
Paulo Freire insistia em perguntas: “Sim, professor (e eu me orgulhava do título), e o que mais?”
Devo ter gaguejado muito e, sem saber o que mais dizer, repetia em sentido inverso, dando ênfase e espichando as palavras como se ampliasse a argumentação: “Então, professor, na TV tem muita violência, muita pornografia…”
Provavelmente pensando: “dessa vaca não sai mais leite” – como se dizia no interior – ele mandou algumas provocações em forma de compartilhamento: “Sabe, professor (a gentileza dele foi uma marca para todos nós naquele dia; afinal, ele não esboçava a empáfia própria dos professores que estávamos acostumados a ter), a violência e a pornografia na televisão não me preocupam”.
E então desembestou a falar por uns 40 minutos – embora o tempo já é por conta da memória, nem sempre fiel aos fatos antigos. Fiéis mesmo são minhas anotações que ainda guardo em minha “Agenda das Paulinas” daquele ano. Dali, puxo quatro afirmações anotadas e rememorizo o que disse aquele senhor de fala mansa, mas contundente:
– O que me preocupa na televisão são as histórias que ela conta.
– As teorias são importantes, essenciais, mas não mudam a sociedade; o que muda as pessoas, a sociedade, são as histórias que ela ouve.
– As teorias precisam ganhar forma de histórias para serem entendidas e vivenciadas. Precisam se transformar em imagens mentais.
– O que importa na TV são as histórias que ela conta. São as imagens-síntese dessas histórias que ficam na nossa cabeça, que criam formas de conduta, modelos de comportamento, padrões de vida.
Lembro-me, então, de um longo tempo de fala, em que citava histórias contadas por avós, por minorias sociais e nos provocava: “Qual é a moral dessa história?”. Pediu, então, que contássemos as histórias que ouvíamos de nossos pais ou avós, e nos provocava a entendê-las, a decifrá-las, a buscar pela imagem-síntese de cada uma e perguntou: “Quem aqui é cristão”? A imensa maioria – senão, todos – levantou as mãos. Mandou então outra pergunta: “Qual é o livro com maior volume de imagens, sem ter uma única fotografia, desenho ou gráfico?”. “A Bíblia”, ele mesmo respondeu e passou a discorrer, em detalhes, citando as mais variadas parábolas, situações narradas, histórias contadas. E me recordo – não está anotado na referida “agenda das Paulinas”, só em minha memória, que pode até ser bem parecida que o que ele disse: “Quando perguntavam coisas sérias, que exigiam muitas explicações… Jesus contava uma pequena história, que resumia toda a teoria que ele tinha e poderia ensinar”. Citou então a parábola do Filho Pródigo e comentou: tudo o que Jesus poderia dizer sobre Deus está ali.
Transformação lenta e profunda
Outras duas anotações que gosto de destacar sempre que trabalho com comunicação popular são estas preciosidades de Paulo Freire:
– Prefira dar um passo com o grupo em vez de 10 passos à frente dele. Quem vai na frente quer ser seguido, quer ser modelo; quem caminha junto quer ser parceiro, quer decidir junto, fazer junto.
– Uma transformação social profunda deve partir da sociedade, por meio da educação, e será lenta. Não vamos mudar em poucos anos o que foi construído em quase 500 anos de história.
Recentemente, li um artigo em que Frei Betto afirma exatamente isso, ao dizer que Paulo Freire propõe uma transformação para 30 anos e não para 3 anos. Escreve ele: “Posso afirmar, sem receio de exagerar, que Paulo Freire é raiz da história do poder popular brasileiro nos 50 anos entre 1966 e 2016”.[2]
Aqui está o grande erro de todas as pessoas e instituições – de igrejas a partidos políticos e movimentos sociais – que abandonaram o trabalho com as bases e deixaram as comunidades de periferia nas mãos daqueles que vão lá vender salvação terrena e celestial em troca de voto ou dinheiro.
Ter vivido parte da vida simultaneamente a Paulo Freire e exercitado ao menos parte de seus ensinamentos é estar tangido pela visão de que não há outro caminho que não o da militância popular por uma sociedade mais justa, ética, cidadã, solidária, fraterna, civilizada, verdadeiramente cristã.
Por isso, é essencial conhecer Paulo Freire e não dar ouvidos a quem o critica sem ter lido um único texto dele. Leia ao menos um livro desse pensador brasileiro para entendê-lo e apaixonar-se por ele. Aliás, ler livros de Paulo Freire é um ato quase inglório para quem gosta de sublinhar as frases marcantes. O livro fica quase todo sublinhado, anotado. Pior ainda é quando alguém pede: indique-me o melhor livro de Paulo Freire para ler.
Digo sempre que só posso falar dos quatro livros dele que li e reli: Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Esperança, Pedagogia da Autonomia e Por uma Pedagogia da Questão (com Antonio Faundez). E digo sempre: o melhor deles são os quatro.
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[1] desenvolvido a partir dos anos 1960, ao ensinar 300 cortadores de cana-de-açúcar no Rio Grande do Norte a ler e escrever em apenas 45 dias
* Elson Faxina. Periodista brasileño, doctor en comunicación, profesor e investi-
gador en la UFPR – Universidad Federal de Paraná / Brasil.
A tradução em espanhol está disponível aqui.
A ilustração que acompanha este artigo faz parte de uma coleção de cartuns e desenhos criados especialmente por artistas gráficos independentes e membros do GRAFAR / RS para comemorar os 100 anos do educador Paulo Freire, em 19 de setembro de 2021. Entre os artistas que produziram e doaram suas artes são Alisson Affonso, Aline Daka, Amaro Abreu, Bier, Edgar Vasques, Fabiane, Latuff. Leandro Bierhals, Natalia Forcat, Santiago, Schröder e Vecente. A produção é de Cris Pozzobon. Mais informações e compras: freireandopoa@gmail.com / cafecompaulofreire@gmail.com