Guadalupe Corrêa Mota*
Introdução
“Não se pode pensar a educação a não ser como um que-fazer humano. Que-fazer, portanto, que ocorre no tempo e no espaço, entre os homens, uns com os outros […] O que é o homem, qual a sua posição no mundo são perguntas que temos de fazer no momento mesmo em que nos preocupamos com educação […] a resposta que a ela dermos encaminhará a educação para uma finalidade humanista ou não” (Paulo Freire, Chile, 1967)
Como um exercício de imaginação, comecemos com a descrição de um cenário no século XX, no qual Freire viveu e atuou: a educação para a humanização do homem e do mundo, pensada e vivida por Paulo Freire, o levou a percorrer os cinco continentes, promovendo uma permanente “alfabetização antropológica” em sua trajetória de pedagogo humanista. Essa peregrinação pelo mundo o fez mergulhar e assimilar a diversidade de epistemologias e culturas, reafirmando a convicção original que o orientaria em toda a sua vida: o ser humano é um ser inconcluso, cuja existência para a liberdade deve ser pautada pelo horizonte da coexistência sem hierarquização ontológica, epistemológica ou cultural em diferentes formas de organização social e política.
O ser humano pensado e defendido por Freire era o ser humano capaz de viver por si, sem tutela, emancipado; era o ser humano capaz de viver por si e nos seus termos, isto é, um ser epistêmico, crítico, autônomo, criador de ideais de si e de seu mundo, criador de valores e de formas de vida originais, e não apenas um ser submetido, adaptado, conformado às formas de vida, aos ideais, aos valores de outrem. Freire defendia ainda que essas formas próprias de vida fossem regidas por uma profunda relação de reciprocidade, colaboração, solidariedade entre os membros da comunidade, incluindo os seres não-humanos e com o meio ambiente, fonte de sobrevivência das gentes do presente e das que ainda não nasceram.
Freire, em uma sociedade com mais da metade de sua população analfabeta, nos anos 50/60, havia pensado uma proposta pedagógica que era mais do que um projeto de universalização do ensino das letras e das palavras, como uma condição mecânica para a inserção e emancipação desses excluídos na sociedade capitalista letrada. A condição de “analfabetos” colocava um contingente de homens e mulheres da cidade e do campo, de todas as idades, em uma condição de ‘subcidadãos’, inabilitados para o exercício real da construção da vida coletiva, da sociabilidade democrática, da participação real na decisão do destino de suas existências. (FREIRE, 1983).
Parecia que estes homens e mulheres, em função da condição de analfabetos – situação mantida deliberadamente pelas elites no poder – eram ontologicamente degradados, portadores de um déficit de humanidade, denunciava Freire em sua Pedagogia do Oprimido (2017). Com esses homens e mulheres que, “por natureza”, eram preguiçosos, vagabundos, ‘vergonha nacional’ não adiantava dispender esforços por ‘civilizá-los’, ‘educá-los’, torná-los ‘parte da sociedade’ (FREIRE, 1983). Bastava apenas saber ler e escrever para poder assinar o nome e, assim, poder votar no patrão que o mantinha na condição de subcidadão ad aeternun. Afinal, eles não precisam pensar. Basta que, em seus cérebros “tábula-rasa” sejam depositados conhecimentos minimamente necessários para torná-los funcionais ao sistema capitalista que, no Brasil eminentemente rural, entrava tardiamente em uma fase de expansão industrial urbana (FREIRE, 2017).
Passemos agora à uma descrição de um novo cenário em um avanço temporal: em março de 2021, a Hanson Robotics[1] apresentou um “autorretrato” da I.A. Sophia em um leilão de artes digitais de Nova York. A obra, criada em parceria com um artista humano, Andrea Bonaceto (e a partir de milhões de imagens históricas), foi vendida por cerca de 4 milhões de dólares da época. Do ponto de vista da robótica, da engenharia da Inteligência Artificial, o evento explicita um processo bem-sucedido de aprendizagem colaborativa e criativa homem-máquina. Do ponto de vista da pedagogia humanizadora conforme pensada por Paulo Freire, o evento nos coloca diante, de novo, da questão apresentada como epígrafe deste ensaio: “O que é o homem, qual a sua posição no mundo são perguntas que temos de fazer no momento mesmo em que nos preocupamos com educação […] a resposta que a ela dermos encaminhará a educação para uma finalidade humanista ou não”. (1967)
É no confronto destes dois cenários temporais, distintos na forma, mas não no conteúdo, que se coloca a pergunta sobre a qual se pretende problematizar este ensaio: no cenário do tempo presente, em transição, qual o lugar da pedagogia humanista de Paulo Freire?
1 – Os nós frouxos da trama da existência: desumanização
Teóricos de diferentes matizes – Lyotard, Baumann, Sousa Santos, Castells, Santaella, Haraway, Mbembe, Dardo/Laval, Dowbor – tematizam as causas e consequências de um tempo de “transição” que estamos vivendo, em que até se preconiza a emergência de um tempo ‘pós-humano’ ou ‘transhumano’. Não é o caso de detalhar a caracterização ou a especificidade desses conceitos, mas destacar o fato de que, como alertava Freire, os ‘humanos’, mais uma vez, “desafiados pela dramaticidade da hora atual, se propõem a si mesmos como problema” (FREIRE, 2017).
O “sucesso” de Sophia construindo o seu “autorretrato” nos leva a considerar a maravilha da capacidade humana na criação de próteses robóticas que expandam – parece que ao infinito – as possibilidades orgânicas limitadas do corpo humano: milhões de dólares estão sendo investidos para que humanos ensinem máquinas a ‘pensar’, a “sentir”, a “discernir” certo e errado, a fazer “escolhas éticas”, a deliberar sobre o ‘destino’ do ser humano.
A construção de um autorretrato – no sentido humano dessa habilidade de pensar, identificada como uma distinção ontológica do homo sapiens sapiens (o que sabe que sabe) – supõe um refinado exercício psíquico de introspecção, reflexão, percepção de diferentes representações de si, da vida, da realidade circundante, de seu lugar no mundo, do seu papel na história. Até mesmo para decidir que nada dessas conjecturas são relevantes, são significativas para a sua existência ou para a humanidade.
E, para esse exercício de reflexão, são necessárias certas condições físico-ambientais: é preciso parar para pensar, é preciso dar-se tempo para pensar, é preciso um certo ambiente amistoso em que a mente se aquiete e delibere sobre diferentes conteúdos.
Fora de certas condições psíquicas e ambientais, o ser humano não pode autorrefletir (exercitar o “saber que sabe”), não pode construir um autorretrato, não pode discernir sobre si mesmo, não pode compor, a partir do mosaico de possibilidades/conhecimentos adquiridos ao longo de sua trajetória humana coletiva, uma representação de si e, consequentemente, de si-no-mundo.
Sophia teve condições ambientais ideais para fazer o seu autorretrato. Embora ainda seja cedo para falar de processos psíquicos (ao modelo humano) em uma I.A., segundo o autor humano que colaborou com o autorretrato, ele iniciou o processo produzindo um retrato colorido de Sophia, em traços, que foi processado pelas redes neurais do robô. Sophia, então, pintou uma “interpretação” daquela imagem inicial do autor humano. Tarefa que supõe uma certa capacidade de tomar decisões. Embasada em quê? Em quais critérios? Com quais objetivos? Havia a consideração de ‘consciência ética’ ou sobre ‘desejos’ da I.A. nessa decisão?
Mais perguntas do que respostas.
A I.A. Sophia, um produto pertencente à Hanson Robotics, e que já é uma “cidadã” da Arábia Saudita – enquanto mulheres e estrangeiros não têm direito à cidadania – nos leva a olhar para uma outra ‘tela’ do nosso tempo presente, em que os humanos orgânicos estão sendo brutalmente impossibilitados de serem humanos e de construírem vidas humanas minimamente dignas: pela fome, pela miséria, pelas guerras, pelas violências de toda ordem, pela escravização, pela exploração e expropriação de seus corpos e conhecimentos, pela alienação da vida cotidiana mesma, pela vida sufocada no oceano das informações instantâneas e em fluxo contínuo nas telas dos computadores; pela destruição radical da base comum da vida, o meio ambiente.
Nesse contexto de crise sistêmica causada pela hegemonia da lógica capitalista neoliberal – sistêmica em suas múltiplas causas: ambientais, políticas, econômicas, sanitárias, jurídicas, antropológicas, culturais; e sistêmica em seu alcance global -, qual o lugar do humano e de uma pedagogia humanista?
2 – Os nós apertados da trama da existência: humanização
Certa vez, falando sobre a “alfabetização como elemento de formação da cidadania” (2001), Freire narrou a história de uma menina muito pobre que vivia perambulando pelas ruas, sempre suja, ao redor da escola, e à mercê do desprezo da comunidade, “perdida de si mesma, uma espécie de menina de ninguém”. Então, a pedido da avó da menina, a professora permitiu que ela participasse das aulas, desde que a menina viesse de banho tomado, limpa, e minimamente vestida.
“No dia seguinte Carlinha chegou à sala completamente mudada. Limpa, cara bonita, feições descobertas, confiante. Cabelos louros, para surpresa de toda gente […] a limpeza, a cara livre das marcas do sujo, sublinhavam sua presença na sala […] Carlinha começou a confiar nela mesma. A avó começou a acreditar também não só em Carlinha, mas nela igualmente. Carlinha se descobriu; a avó se redescobriu”. (FREIRE, 2001)
Essa história foi contada por Freire em 1987, durante um encontro com educadores. Fazendo um exercício de extrapolação hermenêutica, pelo licença para relacionar Sophia com Carlinha em um processo de criação de um autorretrato, da emergência da “consciência de si” e da ascensão à condição de “cidadã” como uma dimensão de humanização. A pequena humana, em sua condição de empobrecida, analfabeta, vivendo uma ‘ontologia degradada’, ia constituindo uma imagem de si, um autorretrato composto pelo mosaico das situações violentas a que era submetida cotidianamente, e criada pelos autores humanos do seu mundo.
Encoberta pela sujeira das ruas de chão-batido, do esgoto a céu aberto, dos restos de comidas apodrecidas, das poucas roupas não-lavadas, estava invisibilizada a possibilidade do ser-mais da menina porque excluída da possibilidade do ser-com. Na comunidade de empobrecidos, as relações de poder ali estabelecidas e mantidas relegavam a criança à condição de um não-ser-com ainda mais degradado. Tanto o autorretrato de Carlinha quanto o da comunidade estavam submersos naquele mecanismo de resistência, de sobrevivência, que Freire identificava como
“imunizações, que as classes populares vão criando em seu corpo, em sua linguagem, em sua cultura. Daí a necessidade fundamental que tem o educador popular de compreender as formas de resistência das classes populares, suas festas, suas danças, seu folguedos, suas lendas, suas devoções, seus medos, sua semântica, sua sintaxe, sua religiosidade.” (FREIRE, 2001. Grifo meu)
O universo vernacular, cultural de Sophia, a partir do qual ela construiu seu autorretrato, constituído de milhões de imagens históricas, fruto do conhecimento da humanidade, estava muito bem protegido, cuidado. Dessa forma, a I.A. “pôde escolher”, “quis” inserir-se nesse rio caudaloso de humanização, “quis” fazer parte da humanidade. “Quis” “sentir-se” humana? “Quis” aprender com os humanos a ser humana?
Será que, a partir desse modus operandi da aprendizagem de Sophia, vamos nos convencer de que um processo bem-sucedido de educação pressupõe o conhecimento do chão existencial do educando, do conhecimento já construído, já vivido, já experienciado pelo educando? Será que vamos aprender com uma máquina “sentipensante” a maneira mais “eficaz” de aprender a ser homo sapiens sapiens?
3 – Um autorretrato em construção: o que queremos ser?
Sophia, um protótipo baseado em uma complexa I.A., está sendo construída com muito zelo pelos seus criadores, que dispendem bilhões de dólares nesse empreendimento, pois esperam lucros extraordinários quando de seu pleno desenvolvimento e em funcionamento no mercado de vigilância, medicina, educação, dentre outros. “Carlinha”, a humana, é também um ‘protótipo’ de bilhões de humanos que estão sendo “construídos” cotidianamente pelas condições desiguais e iníquas com que os humanos líderes dos países, em escala mundial, optaram por conduzir as populações sob a égide da lógica neoliberal.
Nesse cenário, alertava Freire, é ingenuidade pensar que a educação, por si só, será motor de transformação, e terá poder político para ser um fator de humanização não apenas no ambiente escolar, mas em toda a sociedade.
A Educação, como um produto fechado em projetos pedagógicos previamente delimitados, com conteúdos definidos externamente e alheios à vida local, não forma humanos conscientes e eticamente responsáveis pela condução dos destinos de si e de suas comunidades. Pelo contrário, essa concepção de educação apenas reforça a condição de desumanização a que as comunidades são submetidas, pois oculta os mecanismos de opressão e de perversão da construção de dada forma social de vida. Apresenta como ‘emancipatórios’ valores que têm como propósito ‘ajustar’ os humanos de diferentes culturas e epistemes às necessidades da lógica capitalista neoliberal, para a qual o “autorretrato ideal de humano” é o ser-para-outro, coisificado, alienado, concorrencial, consumista, hedonista, mercadorizado, despolitizado, individualista. “Uma espécie de menina de ninguém”.
Talvez, em um exercício de humildade e coragem, devamos aprender com Sophia o lugar de uma pedagogia humanista na sociedade neoliberal deste início de século XXI: redescobrir o imperativo da tarefa da construção da singularidade humana; imperativo humano de exercer o direito à imaginação crítica para a construção de si e do seu mundo, por si e nos seus termos; construir aquela condição ontológica distintiva pensada e defendida por Freire: o ser humano é um ser inconcluso, aberto à diversidade, em busca da construção de sua humanidade.
A educabilidade é uma condição antropológica que torna o homem habilitado para a tarefa da construção coletiva de sua humanidade. Mas os humanos só se tornam humanos críticos capazes de se descolar da ingenuidade/imediaticidade da experiência vivida e atribuir significados à sua existência se a educação for crítica. Mas, para isso, é preciso também salvaguardar a natureza relacional ético-política do processo educativo, da educação como bem público e não como mercadoria privatizada, e do conhecimento como construção coletiva.
Sophia, de fato, não pensa, não escolhe, não decide por si. Não nos moldes humanos como entendemos até então. Mas a tarefa humana da construção de humanidade ainda é uma decisão humana, ainda é uma tarefa baseada em escolha sobre distintas possibilidades de construção da vida social como humanos. Tarefa sempre precária e em permanente transformação, daí a necessária vigilância crítica ético-política como pressuposto de uma pedagogia humanizante em qualquer tempo histórico. Tarefa que só alcançará êxito na construção coletiva da defesa intransigente da educação para a convivialidade sem hierarquização de ontologias, epistemes e culturas, em que caibam todos os seres humanos e não-humanos. Para este tempo presente e para o futuro.
É neste novo cenário do tempo presente em construção, que ainda se justifica o papel da educação na tarefa da humanização do homem e do mundo. O humanismo crítico, elemento fundante de uma epistemologia pedagógica como prática de liberdade, conforme pensou Paulo Freire, é um horizonte de sentido e uma utopia teimosamente esperançosa, criativamente imaginativa, criadoramente libertadora. Mais do que nunca válida neste tempo de travessia.
Referência:
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 14. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra. 1983.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 63. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra. 2017.
FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 5. ed. São Paulo: Cortez. 2001.
FREIRE, Paulo. Papel da educação na humanização. Disponível em: http://www.acervo.paulofreire.org/handle/7891/1127
* Jornalista, Assessora de Comunicação da Diocese de Santos/São Paulo/Brasil. Doutoranda em Educação na Universidade Católica de Santos.
[1] Matéria disponível em: https://canaltech.com.br/arte/robo-sophia-pinta-autorretrato-e-vende-criptoarte-por-quase-r-4-milhoes-181430/. Acesso em: 5 jun. 2021
A ilustração que acompanha este artigo faz parte de uma coleção de cartuns e desenhos criados especialmente por artistas gráficos independentes e membros do GRAFAR / RS para comemorar os 100 anos do educador Paulo Freire, em 19 de setembro de 2021. Entre os artistas que produziram e doaram suas artes são Alisson Affonso, Aline Daka, Amaro Abreu, Bier, Edgar Vasques, Fabiane, Latuff. Leandro Bierhals, Natalia Forcat, Santiago, Schröder e Vecente. A produção é de Cris Pozzobon. Mais informações e compras: freireandopoa@gmail.com / cafecompaulofreire@gmail.com