Karla Maria, SIGNIS Brasil

 

Brasil.- Janete de Fátima Andrade tem 54 anos e é mais uma brasileira desempregada. Ela mora no 4º andar do antigo Hotel Santos Dumont, no Bom Retiro, região central de São Paulo. Em seu apartamento pequenino, ao custo de R$ 200 por mês, há espaço para uma cama de solteiro, um armário, um fogão e uma sapateira, além do colchão da caçula, que vive com a avó paterna, mas que aos finais de semana aparece.

 

Ela mora em uma ocupação irregular. Sem emprego e sem teto, ela engrossa as estatísticas dos brasileiros que não têm casa. E são muitos, 6,198 milhões de famílias, segundo dados de 2014 do Departamento da Indústria da Construção da Fiesp (Deconcic).

 

O estudo também revela que, naquele ano, a maior parte (3,258 milhões) das famílias que compunham o déficit habitacional estava no componente ônus excessivo com o aluguel. Na coabitação familiar, outro componente importante do déficit, havia 1,762 milhão de famílias, ou 28,4% do total.

 

Em termos absolutos, a maior concentração do déficit habitacional ocorreu na região mais populosa do país, o Sudeste, onde 2,562 milhões de famílias se enquadravam nessas condições. O Estado de São Paulo tinha 1,432 milhão de famílias no déficit habitacional em 2014. Em Minas Gerais e no Rio de Janeiro o déficit foi de, respectivamente, 545 mil e 472 mil famílias naquele ano.

 

Mas este quadro se espalha pelo país. No estado do Tocantins, região norte do país, por exemplo, mais de 500 famílias que vivem no Acampamento Olga Benário, no município de Fortaleza do Tabocão, aguardam temerosas o despejo pela Polícia Militar.

 

“As famílias estão aflitas e preocupadas e temem pela violência da polícia, que já confirmou que se houver resistência irão usar a força policial. O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e a Ouvidoria Agrária Regional têm se mantido numa total inoperância e descaso com a situação das famílias que estão na área e não apresentam nenhuma proposta e solução para esta problemática. As famílias não têm para onde ir e nenhum órgão do governo municipal, estadual e federal cuidou de arrumar um local seguro para as famílias ficarem e guardarem seus pertences”, denunciam as famílias assentadas por meio da  Assessoria de Comunicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

 

O próprio MST exige do Incra a destinação destas terras para a reforma agrária e que seja criado um projeto de assentamento para contemplar as famílias que estão na luta pela terra na região desde o ano de 2013. “São terras públicas da União e devem servir para atender ao interesse coletivo e social, neste caso a reforma agrária”, afirma o movimento.

 

O direito à moradia – Em seu capítulo 6º, a Constituição Federal do Brasil de 1988 estabeleceu a moradia como um direito humano. Em 2001, uma lei federal conhecida por Estatuto da Cidade reforçou que o município e a propriedade devem cumprir uma função social. Mas, ao que consta, a teoria não atinge a prática.

 

Para Raquel Rolnik, ex-relatora especial para o direito à moradia adequada da Organização das Nações Unidas (ONU), a moradia deixou de ser um direito humano, transformando-se em um mecanismo de geração de lucros para empresas. Em seus relatórios, ela revela o processo de transformação pelo qual passou esse direito.

 

No Brasil, explica a professora e urbanista, a política habitacional foi capturada pelo mercado financeiro. “O modelo era pegar um fundo público – o FGTS – e emprestar esse fundo para que empresas e construtoras comercializassem unidades habitacionais, sob o argumento de que, depois de um tempo, essas empresas e construtoras iriam recompor o fundo público. Ou seja, já começamos com uma distorção na política de moradia. A pergunta não foi ‘quais são as necessidades habitacionais dos brasileiros?’, mas ‘que produto podemos oferecer para que as pessoas comprem?’”, revelou em entrevista ao jornalista Eron Rezende.

 

Em artigo recente, Rolnik denuncia a falta de interesse político em sanar o déficit de moradia no país, lembrando que tramita no Congresso Nacional a proposta do orçamento de 2018 (Projeto de Lei 20/2017) e que o orçamento previsto, que será debatido até dezembro, não apresenta recursos para subsidiar a habitação rural, as moradias do programa Minha Casa Minha Vida faixa 1 (que atende às parcelas de renda mais baixas), as moradias construídas por cooperativas e entidades e para custear a implantação dos projetos de urbanização de favelas.

 

“Essa decisão é ainda mais preocupante no contexto de crise econômica quando se agravam as dificuldades de acesso a moradia. O aumento das ocupações de prédios e terrenos, o adensamento das favelas e o número de pessoas vivendo nas ruas – que visivelmente aumentaram nos últimos anos – são indicadores do tamanho da crise habitacional que vive o país”, denuncia Rolnik em seu artigo Governo propõe ZERO REAIS para moradia popular em 2018.

 

Ao que parece, Janete e os mais de 6 milhões de brasileiros que vivem em situação irregular continuarão a viver às margens da sociedade, de modo inseguro, sem oportunidade e acesso a um dos direitos garantidos pela Constituição tupiniquim.

 

*Karla Maria é jornalista brasileira, autora do livro Mulheres Extraordinárias, Paulus Editora e duas vezes premiada com o troféu Dom Helder Câmara de Imprensa da CNBB.